Dom Manuel II, o último Rei de Portugal conta a sua versão dos malogrados acontecimentos daquele dia 1 de Fevereiro de 1908 no Terreiro do Paço:
«Há já uns poucos de dias que tinha a ideia de escrever para mim estas notas intimas, desde o dia 1 de Fevereiro de 1908, dia do horroroso atentado no qual perdi barbaramente assassinados o meu querido Pae e o meu querido Irmão. Isto que aqui escrevo é ao correr da pena mas vou dizer franca e claramente e também sem estilo tudo o que se passou.
Talvez isto seja curioso para mim mesmo um dia se Deus me der vida e saúde.
Isto é uma declaração que faço a mim mesmo.
Como isto é uma historia intima do meu reinado vou inicia-la pelo horroroso e cruel atentado.
No dia 1 de Fevereiro regressavam Suas Magestades El-Rei D. Carlos I a Rainha a senhora D. Amélia e Sua Alteza o Principe Real de Villa Viçosa onde ainda tinha ficado.
Eu tinha vindo mais cedo (uns dias antes) por causa dos meus estudos de preparação para a Escola Naval. Tinha ido passar dois a Villa Viçosa tinha regressado novamente a Lisboa.
Na capital estava tudo num estado excitação extraordinária: bem se viu aqui no dia 28 de Janeiro em que houve uma tentativa de revolução a qual não venceu. Nessa tentativa estava implicada muita gente: foi depois dessa noite de 28, que o Ministro da Justiça Teixeira d'Abreu levou a Villa Viçosa o famoso decreto que foi publicado em 31 de Janeiro.
Foi uma triste coincidência ter rubricado nesse dia de aniversário da revolta do Porto.
Meu Pae não tinha nenhuma vontade de voltar para Lisboa.
Bem lembro que se estava para voltar para Lisboa 15 dias antes e que meu Pae quis ficar em Villa Viçosa: Minha Mãe pelo contrário queria forçosamente vir.
Recordo-me perfeitamente desta frase que me disse na vespera ou no próprio dia que regressei a Lisboa depois de eu ter estado dois dias em Villa Viçosa.
"Só se eu quebrar uma perna é que não volto para Lisboa no dia 1 de Fevereiro.
Melhor teria sido que não tivessem voltado porque não tinha eu perdido dois entes tão queridos e não me achava hoje Rei!
Enfim, seja feita a Vossa vontade Meu Deus!
Mas voltando ao tal decreto de 31 de Janeiro. Já estavam presas diferentes pessoas politicas importantes.
António José d'Almeida, republicano e antigo deputado, João Chagas, republicano, João Pinto dos Santos, dissidente e antigo deputado, Visconde de Ribeira Brava e outros.
Este António José d'Almeida é um dos mais sérios republicanos e é um convicto, segundo dizem.
João Pinto dos Santos, é também um dos mais sérios do seu partido.
O Visconde de Ribeira Brava, não presta para muito e tinha sido preso com as armas na mão no dia 28 de Janeiro.
Mas o António José d'Almeida e João Pinto dos Santos não podiam ser julgados senão pela Câmara como deputados da última Câmara.
Ora creio que a tensão do Governo era mandar alguns para Timor tirando assim por um decreto dictatorial um dos mais importantes direitos dos deputados.
O Conselheiro José Maria de Alpoim par do Reino e chefe do partido dissidente tinha tido a sua casa cercada pela policia mas depois tinha fugido para Espanha.
Um outro dissidente também tinha fugido para Espanha e lá andou disfarçado.
Outro que tinha sido preso foi o Afonso Costa: este é do pior do que existe não só em Portugal mas em todo mundo; é medroso e covarde, mas inteligente e para chegar aos seus fins qualquer pouca vergonha lhe é indiferente.
Mas isto tudo é apenas para entrar depois mais detalhadamente na história íntima do meu reinado.
Como disse mais atrás eu estava em Lisboa quando foi 28 de Janeiro; houve uma pessoa minha amiga (que se não me engano foi o meu professor Abel Fontoura da Costa) que disse a um dos Ministros que eu gostava de saber um pouco o que se passava, porque isto estava num tal estado de excitação. O João Franco escreveu-me então uma carta que eu tenho a maior pena de ter rasgado, porque nessa carta dizia-me que tudo estava sossegado e que não havia nada a recear!
Que cegueira!
Mas passemos agora ao fatal dia 1 de Fevereiro de 1908 sábado.
De manhã tinha eu tido o Marquês Leitão e o King. Almocei tranquilamente com o Visconde d'Asseca e o Kerausch.
Depois do almoço estive a tocar piano, muito contente porque naquele dia dava-se pela primeira vez "Tristão e Ysolda" de Wagner em S. Carlos.
Na vespera tinha estado tocando a 4 mãos com o meu querido mestre Alexandre Rey Colaço o Septuor de Beethoven, que era, e é uma das obras que mais aprecio deste génio musical.
Depois do almoço à hora habitual quer dizer às 13:15h comecei a minha lição com o Fontoura da Costa, porque ele tinha trocado as horas da lição com o Padre Fiadeiro. A hora do Fontoura era às 17:30h. acabei com o Fontoura às 15 horas e pouco depois recebi um telegrama da minha adorada Mãe dizendo-me que tinha havido um descarrilamento na Casa-Branca, mas não tinha acontecido nada, mas que vinham com três quartos de hora de atraso.
Vendo que nada tinha acontecido dei graças a Deus, mas nem me passou pela mente, como se pode calcular o que havia de acontecer.
Agora pergunto-me eu aquele descarrilamento foi um simples acaso? Ou foi premeditado para que houvesse um atraso e se chegasse mais tarde?
Não sei. Hoje fiquei em dúvida.
Depois do horror que se passou fica-se duvidando de muita coisa.
Um pouco depois das 4 horas saí do Paço das Necessidades num "landau" com o Visconde d'Asseca em direcção ao Terreiro do Paço para esperarmos Suas Magestades e Alteza.
Fomos pela Pampulha, Janelas Verdes, Aterro e Rua do Arsenal.
Chegámos ao Terreiro do Paço.
Na estação estava muita gente da corte e mesmo sem ser.
Conversei primeiro com o Ministro da Guerra Vasconcellos Porto, talvez o Ministro de quem eu mais gostava no Ministério do João Franco. Disse-me que tudo estava bem.
Esperamos muito tempo; finalmente chegou o barco em que vinham os meus Paes e o meu Irmão. Abracei-os e viemos seguindo até a porta onde entramos para a carruagem os quatro.
No fundo a minha adorada Mãe dando a esquerda ao meu pobre Pae.
O meu chorado Irmão deante do meu Pae e eu deante da minha mãe.
Sobretudo o que agora vou escrever é que me custa mais: ao pensar no momento horroroso que passei confundem-se-me as ideias.
Que tarde e que noite mais atroz!
Ninguem n'este mundo pode calcular, não, sonhar o que foi.creio que só a minha pobre e adorada Mãe e Eu podemos saber bem o que isto é!
vou agora contar o que se passou n'aquella historica Praça.
Sahimos da estação bastante devagar.
Minha mãe vinha-me a contar como se tinha passado o descarrilamento na Casa-Branca quando se ouvio o primeiro tiro no Terreiro do Paço, mas que eu não ouvi: era sem duvida um signal: signal para começar aquella monstrosidade infame, porque pode-se dizer e digo que foi o signal para começar a batida. Foi a mesma coisa do que se faz n'uma batida às feras: sabe-se que tem de passar por caminho certo: quando entra n'esse caminho dá-se o signal e começa o fogo! Infames!
Eu estava olhando para o lado da estatua de D. José e vi um homem de barba preta , com um grande "gabão".
Vi esse homem abrir a capa e tirar uma carabina.
Eu estava tão longe de pensar n'um horror d'estes que me disse para mim mesmo, sabendo o estado exaltação em que isto tudo estava "que má brincadeira".
O homem sahiu do passeio e veio se pôr atraz da carruagem e começou a fazer fogo."
Sua Majestade Real fez um esboço dos eventos:
"Faço aqui um pequeno desenho para mesmo me ajudar."
O desenho acima feito pelo último Rei de Portugal dá uma ideia do percurso descrito pela comitiva real naquele fatídico dia,até ao Terreiro do Paço onde tudo aconteceu.
Também João Franco deu o seu testemunho sobre o regicídio:
«(...) A minha carruagem era a quarta da fila, logo atrás do automóvel do infante D. Afonso.
Surpreendido e inquieto pelo ruído de um tiro de revólver ou de Browning, que manifestamente vinha do lado da estátua equestre, quando a minha carruagem passava em frente à porta do Ministério da Guerra, e para logo sentindo apertar-se-me o coração, por àquele tiro, evidentemente um sinal, se ter imediatamente seguido um nutrido e rápido tiroteio para as bandas do Ministério das Obras Públicas, que as equipagens iam defrontando, - saltei do meu carro e corri para o lado de onde o tiroteio partira.
Nessa ocasião ia passando também, a correr no mesmo sentido, o par do Reino António Costa, e ambos seguimos envolvidos na espessa onda de povo que fugia para as ruas do Ouro e do Arsenal.
Quase ao dobrar a esquina para esta última rua, viu-me o director do Banco de Portugal, meu velho e dedicado amigo Gomes Neto, que, levantando os braços, exclamou:
"Oh! João Franco, mataram o rei…"
Ao que um polícia, ao nosso lado, acrescentou -
"E mataram também o príncipe real!... Mas matámos já os que os mataram."
E outro polícia ainda, com uma carabina na mão, e mostrando-ma, disse:
- " Foi com esta que mataram o príncipe.
Vou levá-la ao meu comandante.
" Perguntei para onde haviam seguido as carruagens, e ouvindo que para o Arsenal, lá me dirigi pela rua desse nome, a pé como viera até ali, sempre envolvido com populares que, apressados e inquietos, procuravam afastar-se, receando o mais que pudesse haver.» (In Franco Castello-Branco, João, Cartas D’El-Rei D. Carlos I a João Franco Castello-Branco seu último Presidente do Conselho, Lisboa, 1924)
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